O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, completa um ano nesta segunda-feira (27) sem a condenação de culpados e sem nenhum dos réus do processo criminal preso. Vários processos correm em diferentes esferas da Justiça do Rio Grande do Sul, mas a demora para apontar os responsáveis pelo saldo de 242 mortes e centenas de feridos causa revolta entre os familiares das vítimas e deixa no ar uma sensação de impunidade.
Nos dias seguintes ao incêndio, as autoridades concluíram que uma série de erros contribuiu para o resultado trágico. Eles vão desde a superlotação da boate, passando pela imprudência dos músicos no uso de artefatos pirotécnicos impróprios para ambientes fechados até as falhas de fiscalização do poder público, que permitiu o funcionamento de um estabelecimento sem condições de segurança e em situação irregular.
Até agora, no entanto, ninguém foi responsabilizado por esses erros. Principais acusados, os sócios da casa noturna, Elissandro Spohr, o Kiko, e Mauro Hoffmann, e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão, ficaram quatro meses presos, mas desde maio passado aguardam em liberdade por um julgamento que pode demorar anos.
“Quando eles foram soltos, ali eles fizeram uma segunda ruptura na nossa vida”, diz Adherbal Ferreira, que perdeu a filha Jennefer, de 22 anos, e desde então tem se dedicado à Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), entidade que reúne cerca de 800 pessoas e da qual é presidente.
Além dos sócios da casa noturna e dos integrantes da banda, bombeiros também integram a lista dos réus nos cinco processos que tramitam na Justiça comum e militar do estado. Mas a ausência de servidores da prefeitura, que chegaram a ser indiciados pelo Polícia Civil, mas acabaram não sendo denunciados pelo Ministério Público (MP), é o que mais incomoda os familiares das vítimas.
“Nunca, em nenhum dia, essa boate, que funcionou por quatro anos, teve todos os documentos prévios que a legislação exigia. O que ocorreu para essa boate ficar aberta durante tanto tempo sem os requisitos necessários que a lei exigia? É isso o que queremos saber agora”, diz Luiz Fernando Smaniotto, um dos advogados da associação.
Para responder a essa pergunta, dois novos inquéritos ainda estão abertos na Polícia Civil para investigar fatos que não foram esclarecidos na primeira investigação. Um deles trata de irregularidades na liberação dos alvarás municipais para a Kiss e o outro de supostas fraude cometida pelos antigos proprietários para a obtenção de licenças.
De acordo com a delegada Luiza Souza, responsável pelo caso, a Kiss nunca teve a documentação necessária para funcionar. Ou ela não tinha algum alvará ou o documento foi liberado sem o cumprimento dos requisitos. Entre as irregularidades apontadas pela polícia também estão falsificações no Estudo de Impacto de Vizinhança, necessários para a autorização de funcionamento do empreendimento.
Os dois inquéritos devem ser concluídos até fevereiro. A polícia não adianta quantas pessoas serão indiciadas nem por quais motivos, mas a expectativa dos familiares das vítimas é que integrantes da prefeitura de Santa Maria estejam na lista por atos de improbidade administrativa.
“Crime é mais complicado, porque a gente tem de comprovar o dolo, se essas licenças foram liberadas para beneficiar, para algum proveito de alguém, o que até o presente momento a gente não tem. Talvez possa se chegar em responsabilização administrativa, política, enfim, questões de improbidade”, diz a delegada.
O prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer (PMDB), se defende. Ele diz que o próprio MP e o Poder Judiciário determinaram o arquivamento de um apontamento feito pela polícia no primeiro inquérito, por homicídio culposo. Os indiciamentos contra outros dois secretários municipais e dois servidores também foram arquivados pelo MP.
“Eu compreendo a manifestação dos pais e familiares, porque é uma manifestação de inconformidade com uma tragédia que todos nós lastimamos. Mas esta questão da responsabilização não pode ser palpite nem desejo. Porque não se faz justiça com injustiças. Se faz justiça verificando a lei e verificando as responsabilidades individuais específicas. No caso, não tem nenhum servidor da prefeitura, nem secretário, nem prefeito, que esteja sendo responsabilizado”, argumenta Schirmer.
O MP aguarda a conclusão dos novos inquéritos da Polícia Civil para decidir se vai oferecer novas denúncias na esfera cível. O processo retornou para a análise dos promotores de Santa Maria, por determinação do Conselho Superior do órgão. Em agosto, oito bombeiros foram denunciados pelo órgão. Funcionários da prefeitura, nenhum.
“Não se captou ou pelo menos não se conseguiu nenhum elemento de prova que indicasse que a prefeitura ou os agentes da prefeitura tivessem agido com ma-fé ou dolo quando liberaram o funcionamento da boate”, justifica o promotor Joel Dutra.
Complexidade do processo causa demora
De acordo com o presidente da subseção de Santa Maria da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Péricles Lamartine da Costa, a sensação de impunidade reclamada pelos familiares não é real. Ele diz que, pela dimensão da tragédia na Kiss e pela complexidade dos processos na Justiça, a demora para a aplicação de qualquer pena é natural.
“Pelo número de pessoas envolvidas e pela quantidade de testemunhas para serem ouvidas, nós sabemos que isso vai ser um procedimento demorado. Mas é preciso respeitar a natureza do processo, do direito à ampla defesa, ao contraditório. É arriscado acelerar o processo, sob pena de provocar a nulidade. As pessoas têm de entender que a busca por justiça demanda tempo. É preciso esperar e ter paciência”, avalia.
Desde 27 de janeiro de 2013, esperar é só o que fazem muitos dos familiares das 242 vítimas. Esperar por um filho que jamais vai chegar em casa depois do aula ou por uma razão para seguir tocando a vida. E por justiça. Adherbal e outros membros da associação prometem seguir na luta até que os culpados pela tragédia sejam responsabilizados.
“Aqueles que devem pagar vão pagar, sim. Eu acho que Deus vai fazer justiça, com certeza absoluta. Mas Deus quer também a justiça do homem. Então cabe a nós assumir essa posição e dizer para o país, não só para Santa Maria, que basta. Isso é falcatrua, isso é indecência, isso é imoralidade, isso é jeitinho. Tem de seguir as regras, as leis que estão aí postas só no papel, vamos botar em prática”, diz Adherbal.
Veja como está o andamento dos processos na Justiça
Esfera criminal
- Acusação: homicidios dolosos e tentativas de homicídio
- Réus: Elissandro Spohr (sócio da boate), Mauro Hoffmann (sócio da boate), Marcelo de Jesus dos Santos (vocalista da banda Gurizada Fandangueira) e Luciano Augusto Bonilha Leão (produtor da Gurizada Fandangueira).
Principal processo do caso Kiss, o que apura crime contra a vida ainda está em fase de instrução na 1º Vara Criminal de Santa Maria. Desde o final de junho, quando começaram os depoimentos, foram ouvidas 92 pessoas relacionadas pela defesa e acusação como vítimas. Outras 25 ainda aguardam para prestar depoimento, em datas a serem marcadas. Depois, serão intimadas pelo menos mais 71 testemunhas e outros 29 peritos, de acordo com Tribunal de Justiça (TJ-RS). Os réus também serão ouvidos.
A última movimentação ocorreu na semana passada. A juíza substituta Karla Aveline de Oliveira negou o pedido do advogado de Elissandro Spohr para que fossem ouvidos os 636 sobreviventes da tragédia. A magistrada – que cobre as férias do juiz responsável pelo caso, Ulysses Fonseca Louzada, – também determinou que o IGP aguarde o retorno do juiz titular para coletar material a fim de realizar nova perícia no prédio da boate em outra data. O procedimento estava marcado para 23 de janeiro. De acordo com a Justiça, o julgamento não sai antes de 2015, na melhor das hipóteses.
Esfera criminal
- Acusação: falsos testemunhos
- Réus: Elton Uroda (ex-sócio da Kiss) e Volmir Panzer (contador).
O ex-sócio da Kiss, Elton Cristiano Uroda, e o contador das empresas da família Sphor, Volmir Astor Panzer, foram denuncidos no dia 2 de abril por falso testemunho. A ação ainda se encontra em fase de depoimentos. Só uma testemunha de acusação foi ouvida até agora.
Esfera criminal
- Acusação: fraude processual
Réus: Gerson da Rosa Pereira (major) e Renan Severo Berleze (sargento).
Dois bombeiros foram denunciados pelo MP em 2 de abril por supostamente terem incluído documentos no arquivo da boate Kiss no Corpo de Bombeiros no dia seguinte à tragédia. O sargento Renan Berleza aceitou uma proposta de suspensão condicional do processo e a ação contra ele foi encerrada. A assistência de acusação contestou o acordo, mas o juiz manteve o benefício. Já o major Gerson Pereira não aceitou a oferta e segue sendo processado.
Esfera militar
- Acusação: Artigo 312 do CPM (inserir declaração falsa em documento público)
- Réus: tenente-coronel Moisés da Silva Fuchs (ex-Comandante do 4º Comando Regional de Bombeiros), o tenente-coronel da reserva Daniel da Silva Adriano e capitão Alex da Rocha Camillo (ex-Chefes da Seção de Prevenção a Incêndios).
- Acusação: Artigo 324 do CPM (inobservância de lei, regulamento ou instrução)
- Réus: sargento Renan Severo Berleze, sargento Sérgio Roberto Oliveira de Andrades, soldado Marcos Vinícius Lopes Bastide, sodado Gilson Martins Dias e soldado Vagner Guimarães Coelho.
Na Justiça Militar, oito bombeiros respondem por condutas com inserir declaração falsa em documento público e conduta negligente. Desde agosto, foram ouvidas 18 das 19 testemunhas de acusação – uma apresentou atestado médico e o depoimento foi remarcado para a primeira semana de março. Após essa fase, abrem-se os prazos para a defesa indicar as suas testemunhas. O processo ainda terá de passar por outras etapas antes do julgamento, que não deve ocorrer antes do segundo semestre, de acordo com o Tribunal de Justiça Militar.
Esfera cível
- Acusação: Artigo 324 do CPM (inobservância de lei, regulamento ou instrução)
- Réus: coronel Altair de Freitas Cunha, o tenente-coronel Moisés da Silva Fuchs, major da reserva Daniel da Silva Adriano e capitão Alex da Rocha Camillo.
Quatro bombeiros também respondem na esfera cível por improbidade administrativa, em ação civil pública ajuizada pelo MP em julho. Atualmente, o processo aguarda a resposta do Estado do Rio Grande do Sul, para que manifeste ou não o interesse em participar. No entendimento do juiz responsável, os atos eventualmente praticados pelos servidores públicos terão desdobramentos para o Estado, que já responde a ação indenizatória movida pela família das vítimas e sobreviventes da tragédia.
Fonte: G1
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