quinta-feira, 5 de março de 2020

A possível adesão brasileira ao acordo de compras governamentais da OMC.


No começo deste ano, o Presidente da República anunciou que, em respeito do contribuinte e visando licitações mais transparentes, decidira pela adesão do Brasil ao Acordo dos Contratos Públicos da Organização Mundial do Comércio.
Trata-se do Agreement on Government Procurement , espécie de acordo plurilateral negociado sob o “manto” da Organização Mundial de Comércio cujo escopo é, assegurar, de forma paritária, justa e transparente a possibilidade de participação de empresas estrangeiras no mercado da contratação pública. Assim, nosso mercado se abriria ao exterior, o que impulsionaria a competitividade, daí advindo, como usualmente se sinaliza, uma maior economia aos cofres públicos. A adesão, alega-se, favoreceria as empresas brasileiras que poderiam disputar o mercado público alheio. Avanços sob o ângulo da transparência também haveria. A cobertura jornalística e o twitter do Presidente não explicitam em que medida as novas regras imprimiriam maior grau de transparência.
Medidas que intensifiquem a transparência são, em princípio, bem-vindas. Reforço a presunção porque há sempre que se identificar a relação custo benefício que as soluções envolvem. Remédios que mais perturbam que curam não devem ser ingeridos.
Lembro-me de aula ministrada ano passado na Itália, quando, após achar que eu havia demonstrado todo o nosso grau de civilidade e apreço pela transparência, o colega Professor, a quem eu devia o convite, não se conteve e me perguntou se havíamos já mensurado 1) os estragos advindos da transparência televisiva dos julgados do STF ou 2) a real vantagem de dar a conhecer votos minoritários, quando importa o julgamento colegiado. O assunto provocou um imenso debate na sala e eu saí esgotada, após enfrentar a Squadra Azurra, num reviver da tragédia do Sarriá. Assim, de fato, independentemente do placar da disputa sobre o assunto acima, há sempre que se ponderar sobre reais vantagens quando também há sacrifícios ou desvantagens.
Mas, partindo da premissa, segundo a qual o interesse público reclama sempre crescente transparência, seria de ser perguntar a razão para não se adotarem, desde logo, regras que contribuam para iluminar o procedimento licitatório. Basta recordar que o instituto da Medida Provisória, ainda que em desprezo aos pressupostos constitucionais, já foi empregado- e disso também não escapa o atual Presidente- para introduzir ou alterar regras relativas à contratação pública. Curiosamente, a mais recente cuidou de tentar reduzir os locais de publicidade obrigatória dos editais de licitação. 
Some-se a isso o fato de que há décadas, se discute a necessidade de aperfeiçoar a prática brasileira, sem que se detecte pela cobertura jornalística tratar-se de algo que esteja merecendo especial atenção do atual governo, sem embargo da edição de atos normativos que isoladamente abordem o tema. O projeto está no Congresso, mais especificamente no Senado da República. Salvo incompetência generalizada da mídia e da comunicação do próprio governo, não parece cuidar de agenda prioritária.
De toda forma, cumpre avaliar as vantagens prometidas.
Não se ignora o raciocínio segundo o qual a simples presença de agentes econômicos estrangeiros poderia desequilibrar alianças nocivas entre os operadores nacionais. Claro que tal raciocínio tem um limite de aplicação, porque a linha do Equador não funciona como cinturão para o vírus da corrupção, que também não é invenção ou prática exclusivamente tupiniquim. Some-se a isso o fato de que instrumentos que permitam maior rastreabilidade e maior participação já os temos, com destaque para o impulsionadíssimo uso do pregão eletrônico por meio do Decreto 10.024/19 e da Instrução Normativa 206/2019.
Medidas e clausulas anticorrupção consideradas necessárias ou convenientes, salvo alguma peculiaridade, não estão condicionadas a pactos tutelados por organismos internacionais. Assim, não identifico razão para a espera ou para possível supervalorização do acordo.
A propósito do tema “transparência”, convido a uma leitura do acordo. A transparência ali perseguida está refletida nos princípios gerais (art. IV) que envolvem a utilização de meios eletrônicos, a adjudicação de modo transparente e imparcial, evitando-se conflitos de interesses e práticas corruptas. Mais adiante, no art. XVI, retoma-se o tema, exigindo-se a conservação dos documentos, relatórios e a rastreabilidade eletrônica. Não há nada mais detalhado a respeito do tema, nada que possa representar uma medida inovadora e logo, não parece possível afirmar que o acordo é a chave que nos salvará.
Novamente é: tal como proclamado, a adesão e o consequente elo provocariam uma onda de moralidade, benzendo os contratos públicos e removendo seus pecados tropicais. Mas, rigorosamente, nas linhas do acordo não há nada que já não façamos ou, pensando no conteúdo do PL 1292 e além, já não possamos fazer.
Quanto à abertura digamos “real” do mercado público brasileiro às empresas estrangeiras, nos limites de aplicação do acordo, algumas observações devem ser feitas.
A primeira é registrar que a medida contrariaria a lógica que ganhou espaço nos últimos anos, e não apenas no Brasil, mas também nos Estados Unidos e União Europeia, por meio da qual à licitação atribui-se uma importância de caráter político/social.
A tutela do meio ambiente e a proteção à micro e pequenas empresas por meio da contratação pública constam, por exemplo, da Diretiva Europeia 2014/24. As Diretiva Europeias sobre contratação pública, desde os anos setenta, ocupam-se de promover a integração e uniformização, o que não se traduz em identidade absoluta das disciplinas nacionais sobre o tema em especial porque, aqui ou acolá, reservam-se espaços para as escolhas por cada signatário sobre como atender as diretrizes. Vale dizer, nem sempre o modus operandi estará de pronto definido pelo Parlamento Europeu. Percebe-se, entretanto, que as atuais Diretivas, mesmo ligadas à sua ratio originária, fundada na não discriminação, paridade de tratamento e ampla concorrência do mercado público, avançam para ditar premissas outras.
O processo de revisão das Diretivas anteriores iniciou-se com a publicação do chamado Livro Verde, em 2011, no qual se salienta o papel da contratação pública para a conquista dos objetivos da Europa 2020. A ideia de uma Europa que cresce de forma inteligente, sustentável e inclusiva está na raiz da otimização da despesa pública e, claro, na busca por contratos que se afeiçoem aos pilares da inclusão e sustentabilidade.
Por isso, os países membros são convocados a criar condições favoráveis à participação de micros e pequenas empresas nas contratações públicas. Não se listam os mecanismos com os quais o escopo será alcançado, embora se afirme por exemplo que a agregação de demandas não poderá impor a concentração em um só fornecedor e que os requisitos para o comparecimento no certame não podem ser tais a bloquear a presença dos operadores econômicos menos robustos. 
Naquele momento, a União Europeia intencionava estimular a agregação das contratações, compreendendo-a como apta a favorecer o controle e a eficiência, e ocupou-se de conceituar e normatizar condições básicas para o caso em que os países decidissem por empregá-la, sem exaurir a disciplina. Alguns, como antes dito, já utilizavam o sistema. Entre os países que já recorriam ao modelo de concentração de compras, estava a Itália, sobretudo por meio da CONSIP, criada no final da década de 90, cuja função foi se elastecendo.
Pois bem. A adesão ao acordo que, para além de precisar de ser acolhida pelo Congresso Nacional, se submete a um passo a passo administrativo, já no interior da OMC. Mas, ao final, o compromisso brasileiro imporá a revisão de estratégias politico-administrativas em matéria de contratação pública. O art. XXII expressamente exige a harmonização entre a legislação interna do país aderente e os contornos do acordo.
A participação de empresas estrangeiras no Brasil, ainda que não vedada expressamente na Lei 8666/93, não é incentivada. Mas é evidente a opção brasileira em valorizar as empresas brasileiras, nos moldes do que dispõe o art. 3 o § 2o , de forma mais direta e o art. 23 § 3o , ambos da Lei 8.666/93. 
O Brasil conta, ainda, com regras que favorecem pequenas e médias empresas, fatia significativa da força econômica brasileira, inclusive com a possibilidade adicional de benefícios para aquelas sediadas local ou regionalmente, até o limite de 10% (dez por cento) do melhor preço válido.
Pois bem. O foco do Acordo é a abertura do mercado. Os documentos enfatizam o escopo de “assegurar uma maior liberalização e expansão do comércio internacional” , evitando-se medidas que possam “proteger os fornecedores, bens ou serviços nacionais, nem a exercer qualquer discriminação entre os fornecedores, bens e serviços estrangeiros”.
A adesão afeta, logo, a política pública em vigor. As mudanças que o acordo pretendido promoverá são significativas e não podem ser adotadas sem um debate democrático a respeito das repercussões, além de estudo técnico sobre vantagens e desvantagens que daí podem advir.
Não se trata apenas de calibrar uma ou outra regra. A adesão sinaliza uma alteração conceitual sobre as finalidades da contratação pública. Ou, no pior cenário, a coexistência absolutamente insustentável de paradigmas contrapostos. Ou a licitação retoma o trilho tradicional de servir à escolha mais econômica, o que se ganharia com a vinda de empresas estrangeiras, ou bem extraem-se do procedimento proveitos outros entre os quais o de facilitar a entrada de empresas que, em condições normais, teriam chances reduzidas de alcançar o mercado público.
Abrir o mercado interno e ao mesmo tempo proteger empresas de pequeno porte, sobretudo as sediadas localmente, parece insustentável.
Insisto: não se trata de ser contrária a elas. Apenas sublinho a necessidade de se definir, afinal, o que se quer com as contratações públicas. O modelo adotado no Brasil e a estrutura do Projeto de Lei em avançado estágio no Congresso Nacional não se afinam com a abertura do mercado a empresas estrangeiras.
Fonte: Conjur. 


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