Aquele cartãozinho sem anuidade que permite parcelar até uma balinha em dez vezes parece gentil. Mas não se engane. Nada vem de graça
"Para quem não resiste a um parcelamento a perder de vista, não há nada mais simpático: um cartão sem anuidade, que sai na hora e lhe permite dividir até um pãozinho em dez vezes"
Já há algum tempo as grandes redes de varejo (pelo menos as que atuam no Brasil) descobriram que receber clientes oferecendo-lhes um cartão de crédito é melhor do que cumprimentando-os com “bom dia”, “boa tarde” ou “boa noite”. Para quem não resiste a um parcelamento a perder de vista (e essa é uma fatia grande dos consumidores brasileiros), não há nada mais simpático: um cartão sem anuidade, que sai na hora e lhe permite dividir até um pãozinho em dez vezes ali, naquela loja.
Mas nada vem de graça. Por isso, nós resolvemos ir a campo, para ler as letras miúdas escondidas por trás dos sorrisos largos dos vendedores de felicidade. Fomos identificar também os erros que os próprios consumidores acabam cometendo ao aderirem a esse tipo de “facilidade”, não analisando a real necessidade daquele cartão e sua própria capacidade financeira para utilizá-lo.
O que ninguém sabe
A primeira parada foi numa famosa rede de roupas, onde, antes mesmo de eu chegar à porta, um simpático vendedor se aproximou: “Olá, senhor. Vamos fazer o nosso cartão? Não tem anuidade, só paga quando comprar e você ainda pode utilizá-lo no McDonald’s”. Respondi, também simpaticamente: “Opa, que legal. E o que eu preciso fazer?” O rapaz falou que bastava apresentar CPF, RG e comprovante de residência.
Quando perguntei a taxa de juros do cartão, ele me olhou espantado, com uma cara de “ninguém nunca me fez essa pergunta” e disse que não sabia. Agradeci e parti para a próxima. Repeti o mesmo modus operandi em outras três lojas, e em todas a resposta foi a mesma. Nenhum vendedor tinha conhecimento sobre algo de que o comprador deveria ser informado.
Tudo bem. Essa informação deveria constar mesmo no contrato, que consumidor nenhum poderia assinar sem ler. Fiz o teste, então, em uma agência de uma empresa que é especializada na comercialização de cartões e empréstimos, onde os vendedores “catam” interessados na rua. Sentei e resolvi dar entrada em um cartão.
Fácil demais, como em todos os casos com os quais me deparei até ali. Só precisaria apresentar uns poucos documentos e aguardar 30 minutos, que o cartão, com crédito para compras e limite para saques, estaria em minhas mãos. Foi nessa agência que ouvi as respostas mais interessantes.
No meio da transação, com a vendedora já animada por estar fechando uma venda, resolvi perguntar pela tal taxa de juros, assim meio que só por querer saber, não dando sinais de que aquilo poderia me fazer desistir. Ela, bem descontraída, disse que não sabia, mas que perguntaria a alguém ao lado. Foi quando ouvi um descarado “depende”. E aí não me contive e perguntei de que dependia. “Da sua renda, senhor, do valor, do tempo de atraso. Mas não se preocupe, que só paga juros se atrasar”.
Bem, mas a conversa não acabou por aí. Perguntei também por esse tal de crédito que eu teria para sacar. E aí a inocente vendedora me garantiu: “Ah, o senhor terá um valor que poderá sacar sempre que quiser e não paga nada por isso”. Agradeci a caridade e, logo em seguida, lembrei que havia esquecido todos os documentos em casa. Dei tchau e disse que voltaria, para desespero geral da nação, que viu sair para escanteio a bola que estava em cima da linha do gol.
A título de informação
Na única loja onde encontrei, em local de fácil visualização, informações sobre o chamado Custo Efetivo Total (CET) dos parcelamentos, empréstimos e afins, descobri o seguinte:
- Para compras em sete ou oito vezes, com juros, a taxa é de 70,54% a.a (ao ano)
- Para o parcelamento da fatura: 352% a.a.
- Para o crédito rotativo (aquele dinheirinho que a moça disse que eu poderia sacar sem pagar nada): 487% a.a.
O que todo mundo sabe
Ninguém há de negar: os cartões são fantásticos para as empresas, porque fidelizam consumidores e, de quebra, ainda conseguem faturar em cima dos juros cobrados dos que atrasam ou “parcelam o parcelamento”. E é nessa brincadeira que muita gente adquire para si dívidas que nunca acabam. Com pouca (ou quase nenhuma) burocracia, o nicho atrai multidões.
Parece irreal, mas conheci há alguns anos um consumidor compulsivo que tinha tantos cartões de crédito que, a uma determinada altura da vida, não sabia mais quantas faturas devia. Com um cartão para praticamente cada loja em que consumia, ele tinha, por baixo, uns 20. Para tentar evitar um colapso financeiro pessoal, resolveu dizer-lhes um tchau. Sim, mas sem precisar ser um adeus. Trancou todos em uma mala e entregou as chaves a um amigo.
Olhando de fora, você pode dizer a mesma coisa que ouvi de muitos vendedores de cartão quando questionei sobre os juros cobrados serem muito altos: só paga juros quem não paga em dia e só faz dívidas quem quer. O grande lance, no entanto, é que os alvos preferenciais nesses casos são consumidores com pouca instrução, muitos dos quais acreditam cegamente que “pagamento mínimo” é um carinhoso afago. Planejamento financeiro, então, é, na melhor das hipóteses, um “ouvi falar”.
De acordo com o IBGE, um em cada cinco brasileiros é analfabeto funcional. Ou seja, 30,5 milhões de pessoas no país leem, mas não entendem. O que essas pessoas farão com um contrato? Quantas contas elas vão colocar no papel? Em quantas conversas de vendedores “espertos” elas vão acreditar?
O que muita gente não quer saber
Em uma loja, resolvi trocar uma ideia com uma senhora que estava fazendo um cartão. Perguntei por que ela estava fazendo aquilo e emendei dizendo que poderia ser uma cilada. O que ouvi: “Mas, meu filho, você quer me dizer que não é negócio poder comprar sem ter dinheiro?”. Aí fica difícil.
Fonte: Administradores
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