O Supremo Tribunal Federal deverá julgar, em 2018, dois pedidos de Habeas Corpus que podem definir novos limites para acordos de delação premiada. Os ministros devem firmar entendimentos sobre pontos controversos de colaborações, como se juízo de primeira instância pode homologar termo envolvendo autoridade com foro por prerrogativa de função.
Os membros da corte também devem analisar se compromisso de colaboração pode fixar benefícios e regimes de cumprimento da pena não previstos em lei e se a proteção ao delator pode se estender a atos de improbidade administrativa.
O caso trata da operação “publicano”. Em janeiro de 2015, o auditor fiscal Luiz Antonio de Souza foi preso em flagrante por crime contra a dignidade sexual.
Ele estava em um motel em Londrina com uma menina de 15 e a irmã dela, de 19 anos, e portava R$ 22 mil em dinheiro — sendo que R$ 2,5 mil se destinavam ao pagamento pela relação sexual com a mais nova. Posteriormente, investigadores descobriram que ele tinha feito programas do tipo com mais de 40 adolescentes.
Ao mesmo tempo, empresários e auditores da receita estadual do Paraná foram presos por supostamente negociar o pagamento de propina para a redução de tributos. Era a primeira fase da operação, e Souza também estava sendo investigado nesse caso.
Encurralado, ele firmou acordo de delação premiada com o Ministério Público do Paraná em maio de 2015. Com o compromisso, homologado pela 3ª Vara Criminal de Londrina, Souza denunciou uma organização que, em sua versão, comandava um esquema de corrupção no Fisco paranaense. E mais: o auditor fiscal acusou o governador Beto Richa (PSDB) de se beneficiar das negociatas por meio de doações não declaradas na campanha de 2014, na qual se reelegeu.
Regime diferenciado
Luiz Antonio de Souza confessou ter praticado os crimes de estupro de vulnerável, exploração sexual de vulnerável, corrupção passiva e ativa, lavagem de dinheiro, falsidade ideológica e participação em organização criminosa.
Em troca de suas informações sobre o esquema da Receita estadual e a exploração sexual de adolescentes, Souza ficaria em prisão preventiva até 30 de junho de 2016. Depois disso, passaria para um regime semiaberto diferenciado, que seria cumprido em prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica até 1º de julho de 2019.
Após esse período, progrediria para um regime aberto alternativo, no qual poderia sair de casa apenas para ir ao trabalho e continuaria sendo monitorado pela polícia. Passado um ano, o auditor fiscal iria para o regime aberto normal, mas sem poder frequentar boates, casas noturnas e motéis.
Enquanto estava preso, porém, Souza extorquiu o empresário Aparecido Domingos dos Santos. O fiscal pediu R$ 1 milhão para não mencioná-lo nos depoimentos de sua delação premiada. Segundo o Ministério Público, Santos é um dos chefes de uma organização criminosa que juntou empresas do setor de abate e venda de suínos para sonegar impostos.
Por isso, o MP requereu a rescisão do acordo de colaboração premiada de Souza. Em 8 de junho de 2016, o juiz Juliano Nanuncio aceitou o pedido e anulou os benefícios concedidos ao auditor fiscal.
Idas e vindas
Revoltado com a rescisão de seu compromisso de cooperação, Luiz Antonio de Souza partiu para o ataque. Em interrogatório em fevereiro de 2017, o fiscal acusou os promotores do caso de adulterar seus depoimentos. De acordo com ele, os integrantes do MP aliviaram a barra de alguns delatados e fortaleceram as denúncias contra outros.
O advogado de Souza questionou em audiência por que não havia vídeos e áudios dos depoimentos de seu cliente prestados na fase extrajudicial. A justificativa do Ministério Público foi que não havia bateria na câmera para gravar os testemunhos.
Em nota na época, o MP-PR declarou que as acusações têm o “claro objetivo de obstar” seu trabalho na operação publicano.
“Os desnecessários, descabidos, desleais e ilegais ataques pessoais, que vem sendo dirigidos aos promotores de Justiça, travestidos de pseudoexercício de defesa têm o único propósito de desqualificar a atuação e tentar desestabilizar os membros do Ministério Público”, destacou o órgão, ressaltando que “não houve escolha, favorecimento ou direcionamento das investigações para atingir ou o excluir pessoas do objeto da operação”.
Delação restabelecida
Quando outro auditor fiscal apontou a divergência nos depoimentos de Souza, este já havia firmado aditivo ao acordo de colaboração com o MP. No documento, ele ratifica as informações prestadas anteriormente e se retrata de “falsear a verdade” quanto às acusações de irregularidades do Ministério Público. Em interrogatório, ele disse que só adotou uma postura agressiva contra os promotores por orientação do advogado.
Com o aditivo, o compromisso de delação foi ampliado. Por um lado, o auditor fiscal comprometeu-se a falar mais e a entregar mais bens. Por outro, o MP-PR concordou em pedir perdão judicial para ele em seis ações penais existentes e nas novas que forem propostas.
Além disso, os promotores obrigaram-se a pedir a redução de dois terços da pena de 49 anos imposta a Souza na primeira sentença da operação publicano, proferida em dezembro de 2016. Cumprido o regime fechado, ele irá para o semiaberto diferenciado.
Nessa etapa, ficará em prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica, mas poderá andar por Londrina entre 6h e 22h, de segunda a sábado. Passados dois anos, o auditor não precisará mais ser monitorado à distância, mas continuará no mesmo esquema de cumprimento da pena.
O aditivo à delação foi homologado pelo juiz Juliano Nanuncio, da 3ª Vara Criminal de Londrina, em 1º de março de 2017.
Palavra do STF
Os questionamentos à delação de Luiz Antônio de Souza chegaram ao Supremo Tribunal Federal. Em dezembro, o ministro Gilmar Mendes concedeu liminar em Habeas Corpus para suspender inquérito que tramita no Superior Tribunal de Justiça contra Beto Richa. O político é acusado de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e falsidade ideológica eleitoral.
Para Gilmar, uma colaboração envolvendo acusações a governador, como a de Souza, deve ser firmada pela Procuradoria-Geral da República, não pelo Ministério Público Federal ou por órgãos estaduais. Isso porque é a PGR quem atua junto à corte que eventualmente julgará os citados: o STJ.
O ministro considerou ainda “pouco confiável” a delação do auditor fiscal, já que ele obteve sua segunda colaboração após negar as práticas indevidas que imputou aos promotores e não corroborou suas acusações com outras provas. Gilmar Mendes também avaliou que o acordo estabeleceu ao delator benefícios que não estão previstos em lei.
Em parecer, a PGR opinou pela denegação do HC. Conforme o subprocurador-geral da República Juliano Baiocchi Villa-Verde de Carvalho, não há problema se o MP estadual e o juízo de primeira instância tratarem de delação que envolva autoridade com foro por prerrogativa de função, se eles não conduzirem diligências contra o acusado.
Carvalho também não viu problemas na celebração de um novo acordo de colaboração, já que o primeiro havia sido rescindido. Desde 8 de fevereiro, os autos estão conclusos com o relator.
Novos regimes
Dentre os pontos polêmicos das delações premiadas ainda não pacificadas pelo Supremo, o principal deles é se acordos de colaboração podem estabelecer benefícios e regimes de cumprimento de pena não previstos em lei — prática comum nos termos firmados na “lava jato”, por exemplo.
O advogado Luiz Antonio Borri, do Walter Bittar Advogados, que atua na operação publicano, afirma que a delação de Souza não poderia ter criado os regimes semiaberto e aberto diferenciados, uma espécie de “regime disciplinar diferenciado do bem”, já que a legislação não prevê essas formas de cumprimento da pena.
Em parecer, os professores da Universidade de Coimbra José Joaquim Gomes Canotilho e Nuno Brandão apontaram que compromissos de delação premiada não podem oferecer regimes de cumprimento da pena que não existem nas leis criminais. Caso contrário, haverá violação aos princípios da separação de poderes e da legalidade.
Outro problema está no fato de o MP-PR ter se comprometido a pedir o perdão judicial em ações a que Souza responde. Em novembro, o ministro Ricardo Lewandowski negou a homologação de compromisso de delação do publicitário Renato Barbosa Rodrigues Pereira por entender que o Ministério Público não pode assinar acordos de colaboração premiada em que prevê perdão judicial e combina qual será o regime inicial do cumprimento das penas do delator.
O máximo que o MP pode fazer, conforme o ministro, é se comprometer a não oferecer denúncia contra o delator, e mesmo assim apenas no limite do que é permitido por lei. Para Lewandowski, só o Judiciário pode conceder perdão ou tratar do cumprimento de pena.
O advogado Luiz Borri também questiona o fato de MP ter celebrado um segundo — e mais vantajoso — acordo de delação com o auditor fiscal mesmo após ele ter continuado a cometer crimes.
“Além do verdadeiro absurdo em que se consubstanciou a entabulação do segundo acordo, é possível verificar que este conferiu maiores prêmios ao delator, exemplo disso foi a devolução de quase meio milhão de reais em espécie ao réu colaborador. Ora, se o delator é acusado de crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, como pode o Estado devolver valores angariados com os possíveis delitos ? Ter-se-ia cometido uma nova lavagem de ativos, agora sob o amparo do Estado?”
O STF enfrentou a questão ao julgar a validade da delação do doleiro Alberto Youssef — espinha dorsal da “lava jato”. A defesa de um dos executivos da Galvão Engenheira envolvido na operação pediu a anulação do acordo e todas as provas que surgiram a partir dos depoimentos dele.
O argumento dos advogados era que a colaboração foi firmada pelo MPF sete dias depois de o juiz federal Sergio Moro considerar que Youssef quebrou um acordo anterior de 2003, no chamado caso Banestado. Eles apoiaram-se em parecer do ministro aposentado do STJ Gilson Dipp que apontava dois problemas: o colaborador não teria credibilidade e o MPF omitiu o descumprimento na primeira chance.
Mas o ministro Dias Toffoli rejeitou o pedido. Em sua decisão, disse que “negar-se ao delatado o direito de impugnar o acordo de colaboração não implica desproteção a seus interesses”. A seu ver, existem duas razões para isso. Uma é que nenhuma sentença pode ser proferida apenas com base em informações prestadas em compromisso de colaboração. Outra é que o delatado terá direito ao contraditório para confrontar as acusações.
Só que o aditivo ao acordo de Luiz Antonio de Souza “inviabilizou por completo o exercício do contraditório e da ampla defesa”, declara Borri. Isso devido a duas cláusulas: uma que permite ao delator alterar suas versões e outra na qual o auditor fiscal admite que “falseou a verdade” ao acusar os promotores de irregularidades, retrata-se dessas afirmações e confirma “todas as declarações prestadas” ao MP nas investigações — que não foram registradas em áudio ou vídeo.
Com essas regras, o Ministério Público garantiu que “tudo quanto fosse necessário à tese acusatória seria confirmado em juízo”, critica o advogado. Assim, ressalta, de nada vale interrogar Souza. Afinal, não há como comparar a versão que narrou em inquérito com a que contou em audiência, pois o colaborador pode modificar suas acusações. O acordo, na visão de Luiz Borri, “inviabiliza qualquer possibilidade de resistência por quem foi delatado”. Esse tema está sendo discutido em outro HC no Supremo, cujos autos também estão conclusos com Gilmar Mendes.
Há, ainda, a questão da proteção do delator contra penas de atos de improbidade administrativa. Se o compromisso de cooperação de Souza não for homologado pela 2ª Vara da Fazenda Pública de Londrina, o MP se compromete a deixar de pedir que ele seja punido por improbidade. Só que a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992) proíbe expressamente transação, acordo ou conciliação envolvendo tais atos.
Ainda assim, há quem avalie ser possível firmar delação em casos de improbidade. O advogado Fredie Didier Jr., professor da Universidade Federal da Bahia, diz que isso é possível porque a ação de improbidade, por ser sancionatória, reflete o processo penal, que admite o instrumento da delação. Além disso, o artigo 190 do Código de Processo Civil de 2015permite que as partes definam as regras do processo, o que abre margem para permitir a cooperação com as autoridades.
HC 151.605 e 144.159
Fonte: ConJur
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