Em que pese movimento recente de ampliação dos espaços dialéticos na estrutura procedimental do inquérito policial, quando comparado à sua forma original, ainda permanece o viés inquisitivo pela concentração de funções/poder e ausência de contraditório pleno.
Frise-se, de antemão, que o rótulo de inquisitivo, muito embora tenha uma histórica conotação autoritária, não deve significar um procedimento necessariamente arbitrário. Diz respeito, na verdade, à maneira de gestão do poder quanto à instauração, desenvolvimento e conclusão dessa fase da persecução criminal. Na investigação, com maior acumulo de poder, é verdade, em um único sujeito (ou autoridade), que é o ente responsável pela investigação.
Não há (nem poderia haver) no inquérito policial a mesma estrutura dialética do processo, marcada fortemente pelo contraditório das partes, em condições de igualdade[1], as quais dotadas de iniciativa probatória à formação regular do convencimento do julgador, o qual, do seu lugar de terceiro imparcial, fica excluído, no modelo acusatório, do poder de ação e de instrução do caso. No inquérito, por sua vez, os poderes estão centrados no delegado de polícia, que, após instaurar o procedimento, muitas vezes por iniciativa própria[2], deverá conduzi-lo de ofício até o final, com a prerrogativa funcional de gestão dos atos instrutórios, restando ao investigado uma participação limitada na produção de informações e, por conseguinte, no convencimento do órgão investigador.
Repita-se: não há contraditório pleno nem ampla defesa no inquérito policial. Isso não significa, contudo, que não haja qualquer dimensão de contraditório ou de defesa na investigação[3]. A questão, por aqui, é de grau ou de nível quanto a esses direitos fundamentais (e inerentes) à garantia (maior) do devido procedimento legal (artigo 5º, LIV, da CRFB), que também vincula o inquérito policial num Estado de Direito[4].
Sabe-se que por contraditório se designa o direito à ciência (ou conhecimento) do procedimento em curso, seus atos e elementos informativos, bem como o direito à participação no seu desenvolvimento e interferência (ou influência) na conclusão. Quanto à defesa, abarca duas dimensões, quais sejam, pessoal (autodefesa) e técnica (advogado), sendo que a primeira, ainda, compõe-se dos direitos de entrevista e oitiva pessoal, além de postulação própria (sem assistência de advogado) à autoridade responsável (ou competente).
Quanto ao inquérito, em especial depois da Súmula Vinculante 14 e a promulgação da Lei 13.245/2016, o direito à informação e à participação do investigado, assistido por defensor técnico, foi significativamente ampliado. Tanto a súmula editada pelo STF quanto o Estatuto da Advocacia garantem ao defensor a prerrogativa de acessar o conteúdo informativo já documentado nos procedimentos de investigação criminal (artigo 7º, XIV, da Lei 8.906/94). Ademais, fica assegurada em lei a possibilidade de acompanhamento técnico do imputado durante o interrogatório ou outra forma de oitiva, além dos atos subsequentes, quando assim requerido, sob pena de nulidade, podendo, inclusive, apresentar razões e quesitos (artigo 7º, XXI, da Lei 8.906/94).
No que toca à autodefesa, o interrogatório policial parece ser o momento mais adequado para tanto, uma vez que nesse ato será dada a oportunidade de o investigado se fazer presente diante da autoridade responsável pela investigação (contato pessoal), bem como fazer uso (ou não) da palavra conforme o seu interesse. Embora sem a mesma dialética verticalizada do processo e, portanto, com menores chances de influência, ainda assim poderá o investigado interferir no convencimento do delegado de polícia responsável pela presidência do feito.
Os requerimentos, com ou sem advogado, são sempre possíveis, contudo submetidos à discricionariedade da autoridade investigadora segundo posicionamento majoritário (artigo 14 do CPP)[5]. Por fim, eventual abuso de poder ou ilegalidade pode ser objeto de reação nos próprios autos do inquérito policial (ex.: pedido de reconsideração ao delegado de polícia) ou impugnada junto aos órgãos de controle interno (ex.: recurso administrativo ao delegado geral ou pedidos de correição à corregedoria policial) e externo (ex.: Habeas Corpus em face de uma prisão temporária ou mandado de segurança para acesso aos autos do inquérito).
Assim, parece não haver dúvidas sobre a existência de certo nível contraditório e defensivo no inquérito policial, muito embora não seja (nem deva ser) a mesma dimensão plena ou ampla da esfera judicial. Frise-se, mais uma vez, as importantes modificações promovidas pela Lei 13.245/2016 no procedimento da investigação criminal, em especial no que diz respeito ao exercício do direito de defesa e à disciplina do contraditório. Muito embora não tenha significado uma completa revisão da estrutura da persecução penal brasileira tampouco a conversão dos procedimentos administrativos de instrução prévia em processos judiciais, submetendo ambos às mesmas garantias, promoveu considerável reforço do direito de defesa e da própria noção de contraditório na etapa investigativa (seja policial seja ministerial).
[1] Em que pese a igualdade processual ser mais um mito dogmático do que uma realidade operacional no sistema de Justiça criminal, o discurso jurídico (ideal) assenta-se nessa garantia (liberal) como decorrência necessária do devido processo legal.
[2] Sabe-se que o inquérito, a depender da espécie de notícia crime, pode ser instaurado de ofício pelo delegado de polícia, ou seja, independentemente da provocação de qualquer sujeito (vítima, representante ministerial ou autoridade judicial).
[3] A tese ora sustentada apresenta divergência (parcial) em relação ao posicionamento tradicional do Superior Tribunal de Justiça, conforme se vê dos julgados a seguir: “É cediço que o inquérito policial é peça meramente informativa, de modo que o exercício do contraditório e da ampla defesa, garantias que tornam devido o processo legal, não subsistem no âmbito do procedimento administrativo inquisitorial” (STJ – Quinta Turma – RHC n. 57.812/PR – Rel. Min. Felix Fischer – j. em 15.10.2015 – Dje de 22.10.2015) / “(...) O entendimento adotado pela Corte de origem está de acordo com a jurisprudência deste Tribunal Superior, firmada no sentido de que o inquérito policial, em razão de sua natureza administrativa, não está sujeito à observância do contraditório e da ampla defesa (...)” (STJ – Sexta Turma – HC n. 259.930/RJ – Rel. Min. Sebastião Reis Júnior – j. em 14.05.2013 – Dje de 23.05.2013).
[4] Para maior aprofundamento do tema, confira: MACHADO, Leonardo Marcondes. Introdução Crítica à Investigação Preliminar. 01 ed. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 87-122.
Fonte: Conjur
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