Subtítulo: no Direito, a terra é plana! Ou: se matar dois leões por dia é difícil, o pior é desviar das antas (frase do Cons. Acácio Jr., o Acacinho)!
A coluna de hoje tem como mote a frase escrita por Freud ao final de sua “espontânea declaração” de que sua filha não havia sido maltratada pela Gestapo:
“recomendo encarecidamente a Gestapo para todos”.
A frase posta ironicamente por Freud à “declaração” é autoexplicativa e ajuda a entender o que acontecendo no Brasil. Por isso volto ao conto Teoria do Medalhão, de Machado de Assis. Nunca esteve tão atual, mormente para confirmar a frase de Umberto Eco, de que as redes sociais acordaram os idiotas ou algo como “os idiotas perderam a timidez”. Pior, estão se tornando maioria. Diz Eco: antes só falavam em mesa de bar e depois de uma taça de vinho, sem causar dano à coletividade. Diziam imediatamente a eles para calar a boca, enquanto agora eles têm o mesmo direito à fala que um ganhador do Prêmio Nobel. Bingo.
Depois da publicação da coluna perguntando se um candidato à presidente podia conspurcar a Constituição e os direitos humanos, li coisas que fariam Machado corar e, ao mesmo tempo, escrever vários contos. Janjões de todos os tipos apareceram. Um sujeito que se assina Ydur Sesun (?) me mandou e-mail dizendo que, por ter criticado Bolsonaro, eu devia ser degolado e que deviam jogar pás de terra sobre mim. Eis o nível. Ameaça de morte. Farei o registro na polícia. O ódio campeia frouxo.
De minha parte, digo: De fato, Janjãozinhos, a terra é plana (a crítica é metafórica — falo nisso por causa de um Janjão que, em seu face, destilou seu ódio — uma das queixas era de que eu, em outra coluna, havia citado Paulo Ghiraldelli, quem, ao que parece, não é apreciado por Janjões). Sim, os janjãozinhos deformados em direito têm razão (alguns tem MBA por EAD): o Direito é só perfumaria e defender a Constituição é um ato de canalhas, como disse o meu ameaçador. Por isso, aconselho: Façam faculdade de Direito e depois digam que o Direito é o que o que se dele diz. Xinguem à vontade. Digam frases “çábias” como “Direitos Humanos só são para humanos direitos” e que “garantismo é coisa de marxista”. A direita brasileira vai ganhar o prêmio ignóbil. Saiam, pois, todos para o “abrasso”, Janjãozinhos fofinhos do papai (no conto, que resumirei abaixo, o pai dá conselhos ao seu fofinho filho Janjão que, já adianto, tem inópia mental).
Em um país de mais de um milhão de advogados (fora os bacharéis sem carteirinha da Ordem) e em que não há professores para lecionar para toda essa gente (por isso qualquer um leciona), o resultado está aí: janjãos-produzidos-em-série. Pessoas que não sabiam ou não sabem o que fazer da vida cursam Direito para, quem sabe, ficar no “chuleio” de alguma vaga em concurso para porteiro ou quejandos (janjâozinhos, quejandos não é cargo, não). Resultado: A frustração depois de formados lhes gera ódio. E passam a atirar. E os que passam, por terem tido essa mesma formação, odeiam do mesmo modo.
Veja-se que quase a totalidade de comentários à coluna sobre as declarações de Jair Bolsonaro foram no sentido de que o colunista é comunista, petista, a favor de bandidos, etc. E houve até um sub-janjão que chamou a minha coluna de “vagabunda” (a ConJur deixou passar, talvez por não acreditar que a inópia mental chegasse a esse patamar). Os poucos comentaristas que apoiaram o que eu disse mostraram perplexidade com o que leram: constataram que pessoas formadas em Direito defendem o fim do ECA, a extinção de direitos humanos, armas para todos, um fazendo ode à leitura de Ustra e coisas do gênero. Poxa, todas essas pessoas fizeram faculdade, a maioria a de Direito, espécie de mobral da pós-modernidade. E saíram da faculdade desse modo: defendendo o fascismo. Sim, fascismo. Apoiam candidato a presidente que diz, em entrevista em 2011, que preferia o filho morto em acidente a ele ser gay e que se mudaria de casa se seus vizinhos fossem gays porque isso desvalorizaria a propriedade, é defendido por gente que fez faculdade. Que votem ou sejam a favor, OK. Mas escrever isso, sem nenhum pudor e ainda achincalhar os outros? Qual é a razão?
Isso tem de ser dito. Por dever cívico e acadêmico. De seca à meca, de Reinaldo Azevedo à Arnaldo Jabor, não é implicância minha. Até na Veja n. 36, de 5 de setembro de 2018, tem a ácida critica de João Cezar de Castro Rocha (que deve ser comunista, assim como o veículo Veja e... eu). Ah: e Alckmin, ao criticar Bolsonaro, deve estar a serviço da Coreia do Norte. Todos estão. Bingo.
Bom, no frigir dos ovos, Machado tinha razão. Eis a síndrome ou fator Janjão. Resumo o conto para quem não leu:
O filho completa 21 anos e seu pai lhe dá um conjunto de conselhos. Se ele seguir, poderá ser um “medalhão”. O típico alienado de nosso tempo, o chutador de ideias, o palpiteiro e o reacionário devem ter recebido conselhos tipo Janjão. Diz o papai: “— Fecha aquela porta; vou dizer-te coisas importantes. Senta-te e conversemos”.
E continua: — Janjão, nenhum ofício me parece mais útil e cabido que o de medalhão. Ser medalhão foi o sonho da minha mocidade; faltaram-me, porém, as instruções de um pai, e acabo como vês, sem outra consolação e relevo moral, além das esperanças que deposito em ti. Ouve-me bem, meu querido filho, ouve-me e entende. És moço, tens naturalmente o ardor, a exuberância, os improvisos da idade; não os rejeites, mas modera-os de modo que aos quarenta e cinco anos possas entrar francamente no regímen do aprumo e do compasso.
— E sigo, Janjãozinho. Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas ideias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente; coisa que entenderás bem, imaginando, por exemplo, um ator defraudado do uso de um braço. Ele pode, por um milagre de artifício, dissimular o defeito aos olhos da plateia; mas era muito melhor dispor dos dois. O mesmo se dá com as ideias; pode-se, com violência, abafá-las, escondê-las até à morte; mas nem essa habilidade é comum, nem tão constante esforço conviria ao exercício da vida.
— Mas quem lhe diz que eu…
— Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência de ideias, ainda assim pode não passar de uma traição da memória. Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expender francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma eloquente, eis aí uma esperança. No entanto, podendo acontecer que, com a idade, venhas a ser afligido de algumas ideias próprias, urge aparelhar fortemente o espírito.
— As ideias são de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as sofremos, elas irrompem e precipitam-se. Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é extremamente delicado, distingue o medalhão completo do medalhão incompleto. Portanto, tu podes ser um medalhão completo, Janjão! Tu vencerás!
— Meia-noite. Entras nos teus vinte e dois anos, meu peralta; estás definitivamente maior. Vamos dormir, que é tarde. Rumina bem o que te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o Príncipe de Machiavelli. Vamos dormir. FIM.
Pronto. O Janjãozinho aprendeu bem a lição. E se multiplicou. Seus pares já são maioria. Com inópia mental, tomaram seu rumo. Esse é o Brasil: os críticos e intelectuais tem de matar dois leões por dia; mas a parte mais difícil é desviar das antas.
Numa palavra final: levando em conta as ofensas, os hate speech dos comentaristas da ConJur, das redes sociais, dos posts nos face books e da ameaça de morte do indivíduo chamado Ydur, eu me rendo, do mesmo modo que escreveu Freud. E digo:
“Por tudo isso, recomendo, encarecidamente, para todos, o voto em Bolsonaro”.
Sim. Eu perdi. Sim, princípios são valores; moral deve corrigir o Direito; uma análise econômica deve derrotar qualquer regra jurídica, inclusive a Constituição; Kelsen foi um exegeta; Constituição não serve para nada; estudar é para trouxas; escrever de forma sofisticada é besteira; a escola sem partido é pop; Frota deve ser ministro da cultura; Felipe Melo ministro do esporte; o que vale é a prática (sic) e a teoria não serve para nada; é legal dizer estultices e asneiras desde que sejam estultices “sinceras”; livros bons no Direito são os resumos e resumões; bandido bom é bandido morto; direitos humanos só são para humanos direitos; defensores de direitos humanos são bandidólatras; Ferrajoli é comunista; garantismo é marxismo; se os presídios estão cheios, sempre cabe mais um, porque-presídios-são-como-coração-de-mãe; é certo que escravos negros não vieram da África e são, junto com os índios, indolentes e/ou preguiçosos; por óbvio, cotas são desnecessárias e índios têm terra demais; cuidar do meio ambiente atravanca o progresso; ECA é um lixo, a Constituição é comunista, todos devem poder usar armas... e quejandos. E tudo isso é pop.
Eu me rendo. Com as mãos para cima! Podem levar meus lápis, canetas e livros!
Ah: para quem está com raiva, ouça Lakmé, de Léo Delibes. Fala de um protesto contra a proibição que os britânicos impuseram aos cultos hindus. Vejam e ouçam. E fiquem bem! Como disse, imitando o título de um livro do Juca Kfouri e de um livro de Neruda, confesso que perdi.
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