Por maioria de votos, a 2ª turma do STF concedeu ordem de ofício para restabelecer sentença de impronúncia em relação a dois pacientes. O TJ/CE, ao prover recurso do parquet, submeteu-os ao Tribunal do Júri, aplicando o princípio do indubioprosocietate.
O juízo de 1º grau entendeu que, quanto aos pacientes, não havia nos autos qualquer indício de autoria do crime, pois as testemunhas presenciais não os viram praticando atos contra a vítima de homicídio, de modo que o simples fato dos denunciados terem corrido atrás da vítima não indica sua adesão à conduta do corréu.
Já o TJ/CE deu maior valor aos relatos obtidos em fase preliminar e, aplicando o princípio do in dubio pro societate, pronunciou-os.
“Lógica confusa e equivocada”
O relator, ministro Gilmar Mendes, afirmou que o caso demonstra os “efeitos problemáticos ocasionados pela construção do indubioprosocietate como critério de decisão para o juízo de pronúncia no Júri”.
O ministro disse que, embora exista jurisprudência da Corte no sentido de aplicação “sem maiores cautelas” de tal princípio, inclusive de sua própria lavra, Gilmar considerou que a situação carece de análise.
“Das razões do Tribunal de Justiça, em detrimento dos depoimentos testemunhais que foram ouvidos em juízo, deu-se maior valor a relatos obtidos somente na fase preliminar, os quais não são submetidos ao contraditório em juízo, não podem ser considerados elementos com força probatória razoável. Além disso, o juízo recursal deu preponderância também a um testemunho de ouvir dizer, a mãe da vítima, que teria ouvido suas declarações no hospital, antes de falecer.”
Conforme o ministro, não há vedação legal ao uso de tal elemento, contudo é inegável que uma declaração de alguém que não presenciou os fatos, somente ouviu o relato de outra pessoa, tem menor força probatória do que o de outras testemunhas presenciais que foram ouvidas em juízo.
Mencionando a necessidade de uma teoria da valoração racional da prova penal, Gilmar concluiu que a decisão do TJ deu mais valor a testemunhos de ouvir dizer e relatos da fase investigatória, não reiterados em juízo.
“Ou seja, diante de um estado de dúvida, em que há preponderância de provas da não participação dos acusados nas agressões, o Tribunal optou por alterar a decisão de 1º grau e pronunciar os acusados. Percebe-se a lógica confusa e equivocada ocasionada pelo suposto princípio in dubio pro societate, que além de não encontrar qualquer amparo constitucional ou legal, acarreta o completo desvirtuamento das premissas racionais de valoração da prova. O princípio do indubioprosocietate desvirtua por completo o sistema bifásico do procedimento do júri brasileiro, esvaziando a função da decisão de pronúncia.”
Segundo o relator, a primeira fase de um procedimento de júri – a sentença de pronúncia – consolida um filtro processual que busca impedir o prosseguimento sem lastro probatório mínimo, de modo a se limitar o poder punitivo estatal.
3x2
O ministro Fachin, que votou logo em seguida, divergiu do relator. Para Fachin, nada obstante o estado de dúvida, o juízo colegiado de 2º grau emitiu um juízo de pronúncia, e concluiu que este estado de dúvida tem indicio mínimo de materialidade e autoria a ser resolvido no Tribunal do Júri: “Se toda revisão por juízo colegiado sobre uma sentença de impronúncia não puder ser considerada como válida e efetiva para remessa ao Tribunal do Júri, teríamos que a decisão de impronúncia de 1º grau seria insuscetível de qualquer recurso.” A ministra Cármen Lúcia também divergiu do relator.
A maioria pela concessão da ordem de ofício foi formada com os votos dos ministros Celso de Mello e Lewandowski.
Em longo voto, o decano assentou que “se o juiz se convence de que há prova inquestionável em torno da materialidade e de que existem elementos probatórios que possam traduzir-se na presença de indícios suficientes de autoria ou participação, então nesta hipótese, legitimar-se-á a decisão de pronúncia".
"Considerado o nosso sistema constitucional e tendo em vista que ninguém se presume culpado, não se pode formular qualquer juízo que implique restrição à esfera jurídica do réu, especialmente nos casos em que o Ministério Público falha na satisfação do seu ônus probatório.”
O decano lembrou que o próprio TJ reconheceu a situação de dúvida, e “em vez do estado de dúvida favorecer o acusado, isso faz parte do próprio modelo consagrado pela Constituição vigente a partir de 1988, é uma consequência quo natural ao Estado Democrático de Direito, mas longe de beneficiar o acusado, vem, na verdade, em seu detrimento. O estado de dúvida que eventualmente emerja de qualquer processo penal de conhecimento, ainda que sob o rito procedimental do júri, não pode autorizar a formulação contra o acusado de qualquer juízo que importe em restrição ao seu status libertatis e sua esfera jurídica. Em nosso sistema jurídico, uma situação de dúvida razoável só pode beneficiar o acusado, jamais prejudicá-lo.”
Também na mesma linha, Lewandowski ressaltou a distinção feita pelo ministro Celso de que a presunção de inocência tem assento constitucional enquanto o princípio in dubio prosocietate seria, no máximo, um adágio forense.
A concessão da ordem de ofício não impede, nos termos do CPP, que, enquanto não ocorrer a extinção da punibilidade, seja formulada nova denúncia com relação aos recorrentes.
Fonte: Migalhas
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