quarta-feira, 6 de julho de 2016

Código de Processo Penal tornou-se Frankenstein jurídico, diz advogado


O Código de Processo Penal, de 1941, passa por uma crise de identidade por causa de reformas pontuais por que passou ao longo das últimas décadas. Com isso, ele se tornou um "Frankenstein jurídico", na opinião do advogado Aury Lopes Júnior, especialista no tema. “O processo penal é uma colcha de retalhos sem consistência ou coerência”, disse, durante audiência pública na Câmara, na terça-feira (5/7), que debateu o projeto em tramitação no Congresso para reformar o CPP.
Ele defendeu que o novo código, cujo projeto de lei já foi aprovado pelo Senado e agora é analisado por uma comissão especial na Câmara, deve respeitar os preceitos da Constituição e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos para gerar processos justos de acordo com o binômio “garantias” e “punição”. “A vítima pode ser irracional e vingativa, mas o Estado, não, porque é reserva ética de legalidade”. Para o advogado, o novo código deve manter e aprimorar a investigação preliminar para apurar a tipicidade da conduta e, principalmente, se vai ser instaurado processo.
Aury criticou o projeto por não definir a quem cabe a investigação, à polícia judiciária ou ao Ministério Público. O problema, diz ele, é que o inquérito policial já tem forma definida em leis e regulamentos e as investigações hoje feitas pelo MP, não, o que fere direitos fundamentais. “Forma é garantia e limite de poder”.
Um avanço do projeto de novo CPP, segundo Aury Lopes Jr, é a figura do juiz das garantias que atua na fase pré-processual, durante o inquérito. O problema no processo penal brasileiro, afirma o professor, é que esse juiz autoriza procedimentos da fase do inquérito, como quebra de sigilo bancário, fiscal, telefônico ou determina prisão, e depois julga o caso. “Isso é um ranço inquisitório vergonhoso. O juiz que atua na fase processual está contaminado e não pode julgar.”
Investigação da defesa
Para o advogado Gustavo Badaró, professor de processo penal da USP, o projeto traz uma boa inovação quando prevê que a defesa possa fazer investigações. Isso, segundo ele, transforma o inquérito num "procedimento trifásico".

Atualmente, explica, o processo penal brasileiro se dá em duas fases: a investigação e o processo. Encerrada a investigação, o MP oferece a denúncia sem que o investigado tenha a oportunidade de se manifestar. Prova do problema é que grande número dos Habeas Corpus que chegam aos tribunais que não tratam de prisão é usado para o controle de admissibilidade dessa acusação, disse.
“O processo de código estabelece uma fase intermediária, de juízo de admissibilidade da acusação, para que a defesa também possa levantar fontes de provas que possam demonstrar a inocência do acusado ou ao menos a inviabilidade do processo”.
Badaró sugere, no entanto, que os deputados incluam no projeto um dispositivo que garanta a paridade entre as investigações da defesa e do Estado. A ideia dele é que isso seja incluído no artigo 13 do projeto, que trata da possibilidade de a defesa requerer documentos públicos.
Hoje, diz o professor, a defesa tem que pedir para o juiz a inclusão de uma certidão, por exemplo. Se ele achar relevante, pode determinar a inclusão do documento no inquérito. Conforme a redação do artigo 13, o investigado, por meio de sua defesa, pode tomar a iniciativa de identificar fontes de prova em favor de sua defesa, podendo inclusive entrevistar pessoas.
Só parece
Badaró chamou atenção para a redação do artigo 94, que diz que ninguém será processado nem sentenciado senão "pelo juiz constitucionalmente competente ao tempo do fato".

Para ele, a expressão “constitucionalmente” pode dar a entender que o artigo reforça garantias. Na verdade, diz, enfraquece, porque há poucos critérios de definição de competência na Constituição. A maioria dos critérios de definição de competência está nos códigos e leis de organização judiciária, diz.
Deixando o texto dessa maneira, o legislador está restringindo as garantias a poucos critérios. “A Constituição não define se eu vou ser julgado pela 12ª vara ou pela 13ª  vara. E hoje ninguém duvida da diferença entre a 12ª ou a 13ª. Ou estar na mão de um relator A ou B.” 
De acordo com Badaró, o novo código precisa assegurar que todos serão processados e julgados pelo juiz competente de acordo com critérios legais de competência da Constituição, das leis federais e da legislação de organização judiciária.
Sem forma
Na avaliação de Gustavo Badaró, o projeto reproduz uma regra “péssima” do atual código que diz que a separação dos inquéritos e processos pelo juiz é facultativa. Ele defende a criação de critérios para definir quem é competente após a separação.

Badaró criticou também a redação do artigo 131, segundo o qual os atos e termos processuais não dependem de forma determinada, reputando-se também válidos aqueles que, realizados de outro modo, cumpram sua finalidade essencial.  Para ele, o legislador processual deve estabelecer um modelo de cada um dos atos do processo: como deve ser a denúncia, a citação, audiência, alegações finais, sentença, recurso etc.
“Afirmar que o modelo não tem nenhuma relevância significa partir da premissa que todo trabalho legislativo é inútil”, afirma. “Não estou defendendo um formalismo exagerado. Os atos típicos são eficazes e geram efeitos processuais. Os atípicos devem gerar a ineficácia daquele ato.”
Histórico
Em sua exposição na audiência, Nereu José Giacomolli, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal (Ibraspp), fez uma retrospectiva das tentativas de reformas do código. A comissão de juristas liderada por Hélio Tornaghi, de 1961, preparou um projeto que foi entregue ao então ministro da Justiça, mas o texto acabou não indo para o Legislativo por causa da crise política iniciada com renúncia de Jânio Quadros e com a deposição de João Goulart, em 1964.

Depois teve o anteprojeto de Frederico Marques, de 1967, que foi remetido ao Congresso em 1975, mas posteriormente retirado de tramitação. O PL 1655, do governo Geisel, recebeu mais de 600 emendas, mas não prosperou.
Em 1992, o projeto Salvio Figueiredo chegou ao Congresso, mas também não foi adiante. Segundo Giacomolli, a comissão presidida pela professora Ada Pellegrini Grinnover, em 1999, optou por não reformar todo o CPP, mas fazer ajustes por partes.  A aprovação mais importante dessa comissão, segundo ele, foi em 2008, com a mudança dos ritos processuais e alterações na parte de sentenças, provas e ritos do tribunal do júri.
Em 2011, foi aprovado o projeto que trata  das medidas cautelares substitutivas da prisão preventiva, que também estava no pacote de reformas setoriais de 2008. Depois disso, permanecia em tramitação o projeto de reforma dos recursos e o referente à investigação pela defesa. Por causa dos problemas que ocorreram com essa reforma setorial, disse, é que nasceu o PL 156 no Senado, que está agora na Câmara.
Brincadeira
Na opinião de Giacomolli, porém, não adianta reformar o código se não houver a criação de filtros para investigar somente os crimes importantes. “Brincamos de sistema criminal. Não estamos investigando homicídios, latrocínios, estupros. Vamos continuar não investigando, não processando e não julgando crimes importantes se não adotarmos critérios para a autoridade policial e para o MP.”

Segundo ele, a maioria dos países da América Latina já reformou seus códigos. Alguns já estão na terceira geração de reforma. Ele diz que o Chile criou um filtro em que 10% dos casos chegam ao processo. Nos Estados Unidos, menos de 5% viram processo.  Para resolver esse problema, Giacomolli defende que deve ser extinto o princípio da obrigatoriedade da ação penal pelo MP.
O procurador Petrônio Calmon Alves Cardoso Filho, membro do MPDF, concorda com ele. E afirma que o CPP deve dizer isso expressamente.
Segundo Cardoso, só 3% das ocorrências policiais chegam ao MP atualmente, embora a lei diga que a ação é obrigatória. Portanto, na prática já há uma seleção do que vai ser investigado ou não. “O Congresso tem o dever de colocar no papel aquilo que é possível cumprir. A obrigatoriedade da ação penal é uma ficção que tem que acabar”, diz ele.
Aury Lopes Jr concorda: “A obrigatoriedade engessa o sistema e desperdiça tempo com processos inúteis, enquanto coisas sérias ficam paradas nas prateleiras”.
Na opinião do procurador, os casos de menor gravidade devem ser resolvidos por meios consensuais. Por isso, ele defende que deve ser melhorada a redação da Lei 9.099/1995, dos juizados especiais, e incorporá-la ao Código de Processo Penal no ponto das medidas alternativas. Mas para funcionar a justiça consensual, alerta Cardoso, o texto do projeto precisa ser trabalhado para fazer referência expressa dos crimes de maior ou menor potencial ofensivo.
Ele destacou como ponto positivo do projeto do CPP que veio do Senado e que está na Câmara a possibilidade do criminoso ir para cadeia por acordo, contando com a redução de parte da pena. “É preciso dar ao cidadão essa liberdade de dizer que aceita a transação penal até mesmo para ir preso”, disse. 
Fonte: Conjur

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