quinta-feira, 26 de maio de 2016

Em 'poema-sentença', juiz do DF anula multa aplicada a idosa pelo Ibama



Um juiz federal do Distrito Federal decidiu abandonar a formalidade do texto jurídico e usou a poesia, na última segunda-feira (26), para afastar a multa aplicada pelo Ibama a uma moradora da capital. Nos 77 versos, o autor descreve a história do processo, fundamenta a decisão, extingue a cobrança e ainda dá um "puxão de orelha" na Justiça (leia a íntegra no fim deste texto).
Na sentença, o juiz da 14ª Vara Federal Waldemar Cláudio de Carvalho diz que a idosa tentou entregar a ave ao Zoológico de Brasília, após ouvir reclamações de vizinhos, mas não teve sucesso. A arara foi entregue à polícia. Meses depois, Elisabete recebeu a multa e recorreu à Justiça para anular a cobrança.Segundo a decisão, Elisabete Ramos dos Santos tinha sido multada em R$ 5 mil por manter uma arara-canindé em cativeiro sem autorização ambiental. Em depoimento, a acusada informou à Justiça que o pássaro pertencia ao irmão desde 1993, e foi herdado por ela após a morte do familiar.
"Quanto recurso despendido: / salário, tempo, papel e atos demandados, / para movimentar o Judiciário / com mais essa demanda desnecessária", diz um trecho da sentença. Carvalho diz que a ave vivia solta na varanda e, por isso, não estava propriamente "em cativeiro".
Com a decisão, a multa foi extinta e o processo foi enviado para arquivamento. O G1 tentou contato com a Justiça Federal do DF nesta quinta (26) para saber se há possibilidade de recurso, mas não conseguiu retorno em razão do feriado de Corpus Christi.
Trecho de sentença escrita em versos por juiz federal do Distrito Federal (Foto: Reprodução)Trecho de sentença escrita em versos por juiz federal do Distrito Federal (Foto: Reprodução)
Mais poesia
O uso da literatura para resolver conflitos não é inédito no DF. No início do mês, um morador de Brasília escreveu uma poesia para contestar a cobrança excessiva na conta de água de abril, causada por um vazamento. O texto chegou ao vice-presidente da Companhia de Saneamento Ambiental do DF (Caesb), que se sensibilizou e concedeu a redução da fatura.

Nos versos, o consultou Luiz Carlos Garcia questionava: “uma coisa é verdade que aqui preciso indagar/Como uma só pessoa/Tanta água só gastar?/Um mistério se formou se essa água aqui entrou/Se dela pouco se usou/A maior parte evaporou?”. A conta passou de R$ 1.150 para R$ 127 e o vazamento foi sanado.
Garcia recebeu outra surpresa: uma resposta, também em poesia, escrita por uma funcionária da Caesb: “a fim de verificar/A situação apresentada/Pusemo-nos a vistoriar/As instalações internas afetadas/E eis que ficou constatado/A ocorrência de um vazamento/Comprovadamente sanado/No mais curto espaço de tempo/Compartilhando da mesma paixão/Me despeço com leniência/E digo com admiração/Receba minha reverência.”
Em novembro, a promotora de Justiça Cleonice Varalda recebeu poema de um detento durante inspeção de rotina na Penitenciária da Papuda. "Reduto da covardia / Inimiga da solidão / Ela nunca está sozinha / É a cela da prisão / Que não recupera ninguém / Deturpa o cidadão", dizia um trecho.
Responsável por fiscalizar a situação dos presídios do DF, a promotora disse ter ficado surpresa com a iniciativa criativa do detento. “[Os presos] escrevem de vez em quando, e sou acostumada a receber cartinhas. Em 90% das vezes, é requerendo algo sobre o processo deles ou sobre as unidades. Já o pedido como forma de poema foi inusitado”, afirmou.
Confira a íntegra da sentença do juiz Waldemar Cláudio de Carvalho:
"Uma Arara Canindé devolvida
por que não a capturou,
nem fazia dela meio de vida,
tampouco a maltratou.

Entretanto foi motivo
da multa ora contestada,
cobrada pelo Ibama
por guarda irregular desavisada.

Desde o ano passado,
a presente ação não se findou,
mesmo estando a Justiça abarrotada
com mais esse feito se ocupou.

São cinco mil reais cobrados
por posse dessa bela ave já domesticada,
ainda que herdada
do irmão da autora ora executada.

Pássaro esse há muito tempo na família.
Desde 1993, cuidado pelo falecido irmão.
Há pouco tempo repassado à autora pela cunhada,
que não dispunha de recursos ou espaço para sua manutenção.

Pensando em ajudar, apesar de desempregada,
a autora já sexagenária, sem antecedentes criminais,
leva o bicho barulhento para o quintal arborizado de seu lar,
mas logo é denunciada pelos vizinhos importunados a reclamar.

Tentando dessa encrenca se desfazer,
Procura ao Zoológico a arara entregar.
Diante da recusa daquele órgão em aceitar,
à cunhada apela pesarosa para o pássaro devolver.

Nesse ínterim de denúncias, idas e vindas,
e até visita policial em sua casa,
assustada e sem saber o que fazer,
entrega a ave na delegacia mais próxima,
na esperança desse imbróglio resolver.

Note-se que sequer se pode falar propriamente em 'cativeiro',
para a multa aplicada se justificar,
pois a ave ficava na varanda, transitando entre as árvores do quintal.
Nulidade flagrante, portanto, do Auto de Infração n° 549554-D.

[trecho do auto citado]
Quanto recurso despendido:
salário, tempo, papel e atos demandados,
para movimentar o Judiciário
com mais essa demanda desnecessária.

Bastaria usar a Administração o bom senso,
não multar essa simples mulher
que até pediu perdão ou pena alternativa
para um delito que referido decreto já lhe havia dispensado sanção.

Mas a pretexto de fazer cumprir a lei,
a Administração descura-se de sua finalidade,
que seria um bem maior,
interpretar melhor a legislação ou mesmo realizar a equidade.

Isso faz a todos perguntar,
para que serve o Direito, afinal,
senão aos litígios evitar?
Ao menos caberia agora refletir:

Se a autora procurou o Poder Público
para a ave rara entregar,
para que insistir em puní-la ainda agora,
desconsiderando a própria legislação pertinente?

Ora, as sanções devem ser razoáveis,
proporcionais à infração cometida,
mas beira o absurdo,
quando dos fatos distorcidas.

Nunca quis a autora delito ambiental cometer,
tanto assim que procurou à lei sua conduta ajustar.
Mas precisou buscar a Defensoria Pública
para do arbítrio se defender.

Não se trata, no caso, de crime insignificante,
Menos ainda de redução proporcional da multa aplicada,
mas de afastar a própria ilicitude,
porquanto inexiste dolo ou negligência na conduta analisada.

Sendo assim, outra alternativa não há
até por uma questão de justiça,
com base no art. 587, I, NCPC, este processo exterminar,
provendo o pedido da autora, na linha do seguinte precedente.

Sem custas ou honorários,
pois muito até agora se gastou.
Só cumpre por última formalidade fazer publicar,
essa sentença para depois arquivar."

Brasília-DF, 23 de maio de 2016.
Waldemar Cláudio de Carvalho
Juiz Federal da 14ª Vara Federal - DF

Fonte: Portal G1


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