Por argumentar em sustentação oral durante um julgamento que o uso de maconha é feito até mesmo por pessoas bem sucedidas, o criminalista Marcelo Feller tornou-se alvo de representação à Procuradoria-Geral de Justiça de São Paulo sob acusação de fazer apologia ao crime. Ele defendia dois jovens acusados de tráfico, que, alegando serem apenas usuários de drogas, buscavam um Habeas Corpus na 9ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Para ilustrar sua fala, o criminalista usou nomes fictícios para descrever situações reais, como de um juiz, chamado de Thiago, que fuma maconha em rodas de amigos — e se fosse fotografado passando um baseado para um conhecido, seria tido como traficante. Falou também sobre um professor de Direito, chamado de Roberto, que compra grandes quantidades de maconha para evitar ir à boca de fumo ou transportar a droga muitas vezes. E citou ainda um jornalista, chamado de Denis, que consome diversos tipos de droga e, por isso, tem uma quantidade grande em sua casa.
O desembargador José Orestes de Souza Nery, relator do caso, não gostou das histórias que ouviu. Ele votou por conceder o HC (ficou vencido), mas determinou que a PGJ apure se a argumentação de Feller é apologia ao crime, prevista no artigo 287 do Código Penal, e ordenou também a “identificação e eventual persecução penal das pessoas parcialmente nomeadas, Denis, Roberto e Thiago”. O relator determinou ainda que a Corregedoria Geral de Justiça seja oficiada e tome providências para a “identificação do juiz maconheiro, Thiago, e eventual aplicação das sanções adequadas”.
Usuário x traficante
Trata-se de um caso de dois rapazes que foram encontrados com dois tijolos de maconha, somando quase dois quilos. Quando foram abordados pela polícia, eles disseram que fumam maconha e compram em grande quantidade para evitar idas constantes às bocas de fumo. O próprio Ministério Público do estado, em memorial, afirma que após ouvir as testemunhas e os acusados, não era possível comprovar que a droga era para venda, e pediu a desclassificação do crime de tráfico.
Os desembargadores da 9ª Câmara, no entanto, por dois votos contra um,negaram o Habeas Corpus e mantiveram os réus em prisão preventiva. Segundo o acórdão, a decisão que converteu a prisão em flagrante em preventiva estava bem fundamentada e o fato de os pacientes não terem sido encontrados em situação que demonstrasse a prática do tráfico de drogas “não tem o condão de excluir, de plano, a imputação”. O único a votar pela concessão do HC foi o relator do caso, Souza Nery, justamente o que mandou investigar o advogado e os personagens que ele citou em sua sustentação oral.
Tentativa de conciliação
Feller ensaiou um mea culpa em embargos de declaração, mas a estratégia não funcionou. Na peça em que pedia que o voto vencido do desembargador Souza Nery fosse acrescentado ao acórdão da decisão, o criminalista pede desculpas: “é bem verdade que este subscritor acredita que, nem de longe, praticou qualquer crime. Mas ao perceber que pode assim ter sido interpretado e, mais, que foi inconveniente, não há nada a fazer que não pedir sinceras escusas”.
Apontando que buscou simplesmente fazer a defesa de seu cliente, usando nomes fictícios, e que sua fala não foi pública, mas feita da tribuna do advogado na 9ª Câmara, o criminalista faz um apelo para que o exercício de sua profissão não seja criminalizado: “O subscritor é advogado ainda no início da carreira, jovem. Espera-se, ainda tenha muitos anos de profissão pela frente. Que não sejam anos em que atuará, sempre, com a espada sobre seu pescoço, receoso de ser processado por suas defesas”.
A tentativa de conciliação não surtiu efeito. Souza Nery deu razão ao pedidono que diz respeito a acrescentar seu voto no acórdão, mas, quanto à ordem para investigar o advogado e os personagens por ele citados, foi direto: “Os demais argumentos inseridos nos embargos de declaração não têm nenhuma ligação com o propósito de aclaramento que caracteriza o recurso, nem a mim se devem destinar, eis que já esgotada minha jurisdição. Sobre eles, pois, nada mais devo dizer”.
Liberdade de expressão
Procurador pela ConJur, o presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Claudio Lamachia, encaminhou o caso para a Procuradoria Nacional de Defesa das Prerrogativas para analisar o possível desrespeito às prerrogativas do advogado. Se ficar constatado que houve desrespeito, a OAB poderá atuar junto ao TJ-SP.
Para o vice-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, Fábio Tofic Simantob, houve claramente um cerceamento da defesa e da própria liberdade de e pensamento. Ressalvando que tem respeito e admiração pelo desembargador Souza Nery, o criminalista é direto: “O advogado, na defesa do seu cliente, não pode ter seu discurso amputado por teias ideológicas. Nenhum tipo de mordaça pode ser colocada na boca do advogado a não ser aquela estabelecida na lei: caso de calúnia”.
Tofic Simantob lembra que a descriminalização das drogas é um dos temas mais importantes da atualidade na Justiça criminal, assim, acusar o advogado que aborda isso de apologia ao crime é impedir o debate sobre o tema.
O próprio Supremo Tribunal Federal já descartou a possibilidade de a discussão sobre a descriminalização da maconha ser apologia, ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 187, que pedia o reconhecimento da legitimidade das manifestações a favor da descriminalização das drogas.
O ministro Celso de Mello, relator do caso, afirma em seu voto que a defesa pública da legalização é lícita e não implica em uma permissão do uso de drogas. “As ideias podem ser fecundas, libertadoras, subversivas ou transformadoras, provocando mudanças, superando imobilismos e rompendo paradigmas até então estabelecidos nas formações sociais”, disse o decano do STF, para quem “o pensamento há de ser livre, sempre livre, permanentemente livre, essencialmente livre”.
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Fonte: Conjur
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